Foi nos primórdios da Primavera que a vida começou. Na verdade, já tinha começado muito antes. Mas o antes não se vê antes da Primavera. E, por isso, para nós foi na Primavera que a vida começou.
Éron era ainda um pequeno rapaz quando o pai lhe disse as palavras qeu lhe iriam moldar a alma.
Sentado no muro do jardim, a desfiar as espigas, ouviu uma voz cantar alto, desafinada, como se tropeçasse ao sair dos lábios e fizesse ricochete nas pedras do caminho. Olhou na direção da voz. A princípio não viu nada.
Mas com o aumentar da voz viu primeiro um chapéu surgir no virar da esquina, seguido de uma cara desfigurada, como se precisasse de electricidade mas estivesse desligada, com um olho mais aberto que o outro e a boca aberta, mais de uma lado que do outro, por entre uma barba que existia mais por descuido que com propósito.
O homem cambaleava de um lado para o outro, com uma cana longa sobre os ombros, presa pelos pulsos que nela repousavam, pesados. A voz, alta e aos soluços, cantava uma canção que parecia estrangeira.
Éron seguia o homem com os olhos, cada hesitação, cada cambaleio.
Que estranho homem era aquele! Não devia ser dali. Éron nunca tinha visto ninguém andar ou falar daquela maneira.
De repente, o homem deu-se conta do rapaz que o olhava. Parou e tentou endireitar-se. Olhou sério para o rapaz, de sobrolho frnazido, a avaliar a situação. "Ólia só!... um lapazito aqui j'pécado." A fala arrastada, carregada de jotas e erres fracos era difícil de perceber. Éron escutou com atenção, mas para ele soava-lhe a estrangeiro.
O homem cambaleou uns passos na direcção do rapaz, com um sorriso torto e deformado nos lábios. "J'tás aqui zózinho?". Esperou pela resposta, que não veio. "Ólia queu nãum môdo... eheheh!". Deu uma gargalhada e pôs-se sério de repente. "Nãum t'ensinalam a lespeital os mais vélios?"
Foi no momento em que o homem deu mais um passo em frente que uma voz surgiu do lado oposto, vinda de casa. "Fora daqui!"
O pai de Éron, um homem de meia estatura e forte, de olhos e cabelos escuros, saiui de casa em camisa interior e calças e cruzou o jardim com fúria e um jornal enrolado na mão direita, erguido no ar em jeito de ameaça. que ele usou para enxotar e direccionar o homem a continuar o seu caminho.
O homem trôpego ohou para a nova criatura que tão veemente gritava e gesticulava de ollhos semi-cerrados para perceber o que se passava. Quando o pai do rapaz chegou a meio do jardim, o trôpego reparou na cara de fúria e no canudo ameaçador e, abrindo as palmas das mãos que se penduravam na cana em jeito de rendição e recuamdo um passo torto, retorquiu: "Eh, eh cal-lma. J'tava a vel s'o lapaz j'tava peldido."
"Não está perdido coisa nenhuma! Desaparece!" rosnou-lhe o pai de Éron. O homem deu mais uns passos trôpegos para trás e voltou a cambalear na direcção do caminho. Resmungou durante um pouco, mas logo lhe voltou a canção que lhe embalava o caminho e, aos soluços, voltou a cantar ao longo do caminho.
Éron ficou a olhar o estranho homem ficar cada vez mais pequeno no horizonte. "Anda para dentro que está a ficar frio" comandou-lhe o pai.
"Quem era?" perguntou o rapaz. O pai fez um som com a boca, um som de desaprovação, de nojo.
"Aquele era um zé-ninguém. Um vagabundo sem respeito."
"Era estrangeiro?"
O pai olhou para o rapaz, surpreso. "Estrangeiro?"
"Sim," respondeu Éron, "ele não falava como nós."
O pai riu-se. "Não Éron, ele não era estrangeiro. Era um bêbado! Como todos os vagabundos." Olhou para a figura do homem que diminuía na distância e, com nostalgia, acrescentou: "Ele podia ter sido alguém..."
Éron olhou outra vez para o vulto que cambaleava na distância. A voz trôpega e e tropeçante já não se ouvia. Agora, só os pássaros e as ervas do campo cantavam suavemente ao ritmo da brisa. Éron largou as espigas e seguiu o pai para dentro de casa.
"Pai, eu sou alguém?"
O pai olhou o rapaz intrigado e respondeu-lhe. "Claro que és alguém. És o meu filho, Éron." O homem forte deu o assunto por encerrado e retomou a carpintaria que tinha deixado quando saíra de casa de jornal enrolado na mão e rugido na garganta.
Éron pensava ainda no homem cambaleante.
"Então" voltou a perguntar, "ele não era filho de ninguém?"
Sem pousar o lápis ou a fita métrica com que marcava a madeira, o pai respondeu-lhe "Sim, há-de ser filho de alguém."
Éron pensou na resposta do pai.
"Mas pai, se ele é filho ele também é alguém." Desta vez o pai pousou o lápis e a fita métrica e explicou.
"Não ser ninguém quer dizer que não fez nada com a vida. Começou por ser assim uma criança como tu. Mas, quando chegou a hora de se fazer alguém, por si, ficou vagabundo. Tornou-se ninguém." Éron olhou o pai, confuso. Como podia um alguém tornar-se ninguém? "Para seres alguém" acrescentou o pai ao ver o olhar confuso de Éron, "tens que estudar. Tens que ter uma profissão decente, de respeito. É assim que te tornas alguém, é assim que te tornas em alguém de valor."
No cérebro de Éron estas palavras processavam-se com delicadeza. Era importante tirar o sentido do que o pai lhe ensinava.
Ao ver que o rapz continuava de olhar confuso, o pai acrescentou com um sorriso em jeito de brincadeira: "Promete-me que não vais ser um vagabundo zé-ninguém. Promete-me que te vais tornar alguém de valor."
Éron sorriu e prometeu ao pai que se tornaria numa pessoa de valor.
No outona da vida, chegou o dia em que recebeu o prémio que o reconhecia como um dos melhores na sua profissão. Éron passou a noite em branco, sentado no chão da casa de banho, com uma mão na cabeça a olhar para o vazio.
carolina caetano, Dec 2020
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